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ANTES

Guerra

 

Trecho do diário do Galvenais Ithi da Tribo de Katzen.

Já é noite. O chão está se cobrindo com neve mais uma vez. Cobrindo a antiga que já se encontra marrom e cheia de pegadas, em muitos lugares vermelha e com pedaços indistintos de guerreiros mortos, que talvez nunca sejam encontrados.

Pedimos trégua para recolher nossos mortos e cuidar dos feridos. Eu sou um dos feridos. Falta-me um pedaço do braço, tenho uma ou duas costelas quebradas e me sinto tão cansado. Arrepio-me a cada maldito uivo que escuto. Por que os desgraçados têm que fazer tanto barulho? Seria dor ou alegria? Acho que nunca vou saber. Nós somos tão diferentes, quietos e reservados, calmos e pacientes, elegantes e ferozes.

O General March está morrendo na tenda ao lado da minha, ele também esta fazendo muito barulho, metade de suas entranhas foram levadas e a outra metade esta saindo pelo que sobrou de sua barriga. É assim que quase todos os nossos feridos se encontram: meio dilacerados. Nós quase não deixamos feridos para que eles possam cuidar, somos muito mais letais que eles, muito maiores e mesmo assim perdemos para sua estratégia e ataque em grupo.

Assim que o sol nascer vamos novamente manchar a brancura da neve. E por todos os Deuses, eu só queria estar em casa.

 

Trecho do diário do Coronel Cesan da Tribo de Katzen.

Meu medo pulsa por cada veia do meu corpo. Sempre sonhei ser promovido e sei que vou ser, assim que o sol nascer e a noticia de que o General March se foi, eu serei nomeado General. Terei que lutar nas linhas de frente junto ao Galvenaís. Então me pergunto se é uma grande honra ou suicídio? Sou um ser pequeno como humano e transformado não passo de ser minúsculo. Mica quer me fazer crer que por sermos pequenos temos vantagens sobre os grandes e mais ferozes. Ele dorme sobre minha cama de armar como se não estivesse num acampamento de guerra e sim sob um galho de uma árvore qualquer.

Preferi escrever enquanto ele dorme para parar de ouvir seus suspiros e sorrisos escondidos pelo nosso akili. Ele esta radiante; “Lutaremos ao lado de Ithi e Vitár amanhã!”. Mica é o aminu mais otimista que eu já encontrei, acho que por isso ele nasceu pra mim, afinal eu me esconderia agora mesmo e de bom grado de cada som irritante desses uivos que fazem a noite parecer mais fria e miserável. Nossa ligação mental, o akili é muito forte, mas ele não esta conseguindo tirar essa sensação estranha que toma conta de mim.

[...]

Mica acordou e agora que descobriu meus terrores esta usando nosso akili para tentar me animar: “Somos ligeiros e vamos rasgar algumas gargantas peludas logo mais!”. Ótimo consolo. Temos que aprender a sentir gosto de sangue em nossos treinamentos, mas sangue de animagos e aminus tem gosto de morte!

 

Trecho do diário do Galvenais Ladin da Tribo de Eckzahn.

Eles são impiedosos e quase não deixam feridos e os poucos que encontramos morrerão lentamente antes que o sol pálido volte a sair. Entre os mortos encontrei Tarikan irmão de minha doce Seivan. Saví uiva sentido a dor de perder seu parceiro Narak e Seivan se recusa a assumir sua forma humana e não deixa que ninguém se aproxime de seu único irmão para darmos um descanso apropriado ao corpo.

Natú, através akili me questionou se a guerra ainda tem significado certo depois de trezentos anos de lutas. Ele disse: “Nunca foi tentado uma trégua!”. Não, nunca foi. Pelo menos não entre os Eckzahn e os Katzen. Os outros povos através dos anos formaram alianças e fizeram tratados. Se cansaram de lutar, de morrer e de perder quem amam. Então Natú em akili me pergunta novamente: “Você não se cansa?” Não respondi. Meu rosto diz a resposta.

Dividi esses questionamentos com General Zorâ, amiga e irmã. E ela nada disse a respeito, quem respondeu foi Zamira: “Depois que o sol nascer e se pôr será o fim e você terá sua resposta!”

Ouvir um animu falar tal coisa ou faz uma pessoa feliz ou a faz enlouquecer. Eu acho que irei enlouquecer.

 

 

O Nascer do sol.

De um lado o silêncio era tenso, do outro os uivos que cortaram a noite se tornaram latidos e ganidos. Os Galvenais estavam transformados. Enormes bestas com olhos fixos no oponente. O tigre branco de olhos azuis e o lobo branco de olhos verdes. Seus animus inquietos ao lado de seus animagos, prontos para batalha. Dois dos três reis brancos ainda vivos.

O branco lustroso do pelo dos Galvenais era quase tão branco quanto à neve recém caída durante a noite, e ainda caiam flocos aqui e ali por cima de pelagens pitadas e malhadas. Os Generais a esquerda de seus lideres pareciam pobres criaturas diante do tamanho e ferocidade dos reis. O lobo cinzento estava sentado com a expressão serena encarando a assustada jaguatirica no oposto do campo, mas seus animus demonstravam vontade de lutar, enfiavam suas garras na terra congelada e eriçavam o pelo da espinha.

Ao lado de Ladin, Seivan bufava de revolta enquanto Saví gania em sua raiva, já Natú mostrava calma e sua serenidade de costume, mesmo que por dentro a loucura da batalha fervesse.

Assim que o sol saiu, os Galvenais saíram de suas posições, ladeados pelos seus animus e seus Generais. Os batalhões de frente avançaram lentamente e ao rugido de um leão as tropas inimigas se encontraram. Garras e dentes a mostra. As linhas de frente eram compostas de pequenas espécies, eram cachorros, coiotes e pequenas raposas, contra jaguatiricas, gatos e suçuaranas. Logo depois eram grandes leões e leoas, tigres, onças e demais felinos contra lobos, hienas, coiotes e tantos outros.

Em minutos o chão voltou a ficar manchado de marrom e vermelho. O ar cheirava pelo molhado, sangue e morte. Os sons misturados formaram um lamento. Já se passava do meio dia quando na lateral do campo Ithi e Seivan se encontraram.

Saví já partia para cima de Vitár, mas que chance ela teria sobre ele? Vitár era rei dos Katzen e como rei era superior ate mesmo aos de sua mesma espécie. Saví era uma loba comum, grande por ser animu de uma alfa, mas ainda assim comum. Foi rápido, fatal, e os únicos sons foram os de um pescoço sendo quebrado e o abafado e seco de um corpo caindo no chão. Seivan ainda não tinha tocado em Ithi, mas assim mesmo ela caiu ofegante no chão, ao mesmo tempo em que seu aminu também caia.

Dizem que quando um animu morre, seu animago sente toda a dor, e vê a vida até ali passar diante de seus olhos enquanto se torna um humano comum. Seivan foi saindo de sua transformação como se cada osso de seu corpo estivesse se quebrando, lembrando o som dos ossos de Saví se partindo a pouco. Ithi só olhava, imponente e feroz. Seivan se levantou quase nua, uma mulher loira e bela, com cicatrizes rosadas por todo corpo, era verdadeiramente uma guerreira.

Ithi pensou em dar as costas e sair para procurar presa mais importante que uma mera humana comum. Vitár já estava mais a frente abatendo todos que tivessem a ousadia de entrar em seu caminho. Mas a humana comum ainda o olhava com um ódio animal. Como ela ainda era capaz de ao menos sentir alguma coisa? Ela se moveu calma e cuidadosa ate estar junto ao corpo imóvel de Saví. Não havia sangue além daquele que saia da boca da loba, não era sangue dela, era dos companheiros de Ithi, ele sentia o cheiro.

Seivan afagou Saví, abaixou e beijou a testa da loba, ficou sussurrando algo no ouvido da animu morta. Ithi leu a ultima palavra nos lábios da humana comum “Vingança”. Seivan jogou a cabeça para o alto, querendo uivar, mas o que saiu foi um grito agudo e estridente. Foi assim que do outro lado do campo Ladin soube que, tinha perdido sua mulher. Sua doce Seivan estava indo, para um lugar onde ele jamais poderia encontrá-la.  Ele chamou Natú com akili e foram para o lugar de onde vinha o terrível som.

Ithi ainda estava segurando o pescoço de Seivan com sua boca, tinha um pouco de sangue, mas Seivan era humana comum e não se precisava de tanta força para matar um ser tão frágil. Ladin uivou para o alto, sentindo a dor queimar seu peito. Natú atacou Ithi como um demônio. Mas o grande tigre branco era muito mais rápido. Vitár já estava em cima de Ladin.

Ithi sentia agora a agonia de músculos cansados e de suas feridas mal curadas, estava buscando forças em Vitár que rugia alto para lhe dar força e incitá-lo a ir mais além. Ladin era só ódio, sentia no ar o cheio do sangue de sua Seivan. Como pode perdê-la? Como poderia viver sem ela? Para que essa maldita guerra no fim das contas?

Nada fazia sentido. Nada ali naquele campo fazia sentido. Para que uma guerra de trezentos anos se no fim ele tinha perdido as pessoas que mais amava. Ao fechar os olhos viu o corpo de seu pai, morto há tanto tempo, os corvos negros sobre ele. Essa lembrança maldita fez Ladin perder o foco e isso foi o bastante, Ithi o mordeu na jugular e ao olhar Natú pelo canto do olho viu que ele estava arrancando cada pedaço que podia da lateral esquerda de Vitár. Então era isso? Os dois grandes Galvenais iriam morrer.

Ithi sentiu o akili de Vitár sumir e sentiu algo em seu corpo que era quente e doía, soltou Ladin que caiu ao seu lado, já morto talvez, para ele só importava chegar ate seu animu. Vitár ainda respirava quando ele chegou perto, ainda em tempo de ver a luz sumir dos olhos, então toda a dor veio, angustia, solidão, silêncio. Era como se cada parte de seu corpo queimasse de frio e calor ao mesmo tempo. Ele não conseguia fechar seus olhos. Natú ia em direção a Ladin, nasceram um para o outro e deveriam morrer juntos. A General Zorâ chegou a tempo de escutar as ultimas palavras de Ladin, mesmo com olhos turvos e mente dilacerada com a dor de perder uma parte de si que era seu animu, ele leu nos lábios do grande Galvenais do lobo branco agora transformado em homem: “Nos dê descanso ou isso nunca terá um fim!”. Natú desabou assim que chegou próximo a Ladin. Então Ithi sentiu o hálito quente de coiote e nada mais viu.

 

Trecho do diário do General Cesan da Tribo de Katzen.

Ithi morreu, Ladin morreu. A Guerra acabou. Vamos fazer um tratado.

 

Trecho do diário da General Zorâ da Tribo de Eckzahn

Meu irmão morreu em meus braços. Natú não teve forças para se aproximar antes do fim. Escutei as ultimas palavras de Ladin e acho que entendi o que ele queria. Ele pediu trégua, paz, descanso, vida nova. Vi Ithi morrer como homem comum. Cesan o General chegou e nem precisei que ele ficasse em sua forma humana pra perceber que mesmo não estando lá e não ter escutado as palavras de meu irmão ele queria a mesma coisa, parecia desesperado para ter paz. Então mandei as tropas recuarem e ele mandou as dele. Seus olhos me diziam tanto. Senti no olhar dele uma confiança e uma cumplicidade que antes achava ser impossível entre nós, que somos tão diferentes, mas naquele momento tão iguais.

Eu mal tinha entrado em minha tenda e começado a chorar a morte do único irmão que ainda me restava, quando um mensageiro dos Katzen trouxe uma carta de Cesan. Pedindo uma reunião dos conselheiros imediatamente.

Na reunião ele disse: “Acabou!”

E eu chorei. Ele me estendeu a mão e disse: “Vamos voltar para nossas casas e famílias, ai poderemos chorar nossos mortos.”

Os conselheiros decidiram fazer um tratado entre todas as nações Animagas. Zamira dorme, esta muito ferida, o que me preocupa muito e precisa de meus cuidados agora. Amanhã bem cedo partiremos para casa.

 

Tratado de paz e pela paz.

Já se passaram quatro meses desde que a Grande Guerra acabou. E Cesan como General foi acompanhar Leon, que foi escolhido o novo Galvenais dos Katzen, entraram no salão da capital Erelis do País de Vogel. Lar das grandes aves de rapina. Primeira tribo a deixar a guerra. Foi o País escolhido para sediar o debate por ser neutro a mais de duzentos anos. E por ter os mais sábios anciãos do mundo.

Cesan, além de General acumulou a função de conselheiro a pedido de Leon, que era primo em segundo grau da falecida esposa de Ithi. Um leão para reinar em tempos como esse certamente era o mais correto. De longe Cesan cruzou seus olhos com Zorâ, ela sorriu e ele entendeu isso como um convite a se aproximar.

- Bom dia General Zorâ! – Cesan estava cauteloso. Os anos de guerra não iriam sair dele assim tão fácil, mas o sorriso de Zorâ lhe parecia tão familiar e confortável.

- Bom dia! Mas agora é Galvenais Zorâ! – disse sorrindo. – Fui nomeada! Pedi para ser, na verdade. Quero que o desejo de Ladin seja realizado.

- Seria uma pena ter de voltar ao inferno depois de provar o doce do céu. – ele disse reparando nos lábios rosados de Zorâ se abrirem em mais um sorriso. - Estar em casa é muito bom e saber que não preciso ver sangue derramado é ainda melhor. – Cesan se sentia hipnotizado pelos grandes olhos verdes da nova Galvenais de Eckzahn.

Um sino tocou em algum lugar distante. E com um breve sorriso se sentaram, ela junto aos Galvenais e ele na plateia, longe um do outro. Longe demais para o gosto de Cesan. Esse tipo de atração era proibido, ele sabia que era. Mas quem controla essas coisas não são as leis. Animagos só poderiam se relacionar com outros da mesma tribo.

O salão era grande. Com grandes janelas, onde um homem alto poderia ficar em pé com os braços abertos e ainda assim não tocaria parte nenhuma da janela. As paredes eram um grande mosaico de pinturas com pássaros diversos em pleno vôo, ou homens a meio passo de se transformar. As cores eram vibrantes e os desenhos pareciam se mexer. No centro havia uma grande mesa em arco como a lua crescente, com sete cadeirões e um púlpito elevado em um lugar que todos na grande mesa e os demais nas cadeiras da plateia tivessem uma visão de quem lá estivesse.

Próximo à porta estava sentado o Galvenais de Hou um homem grande demais ate mesmo para os padrões humanos, tinha um urso branco bordado sob o colete de couro, ao seu lado o Galvenais de Plaz era pequeno, magro e pálido, o líder dos repteis era frio e parecia estar entediado, a direita estava Leon, ele parecia meio perdido ali no meio de tantos muito mais experientes que ele, mas sorria e conversava com a Galvenais de Tengeri, uma mulher bonita de pele queimada pelo sol, a tribo de Tengeri nunca participou da guerra e sempre manteve comercio com todas as outras tribos, se mantendo neutra e pacifica. Seus domínios eram as Grandes Ilhas ao norte e eram o único povo capaz de ficar sem seu animu por perto durante anos se preciso. Por serem animais de água salgada na maioria das vezes, tiveram que se adaptar a viver assim, mesmo que esse treinamento possa até matar os mais fracos.

Faristan, o Galvenais de Vogel e anfitrião, vinha logo em seguida e conversava em voz baixa com Zorâ, por fim, quieto e estranho como sempre o Galvenais de Pryfred, quase não falava e não mostrava felicidade alguma em esta ali, na verdade seu rosto demonstrava aversão, o animu de Kala era um escorpião, o que já não era visto com bons olhos por muitos, seria muito esperar que ele pudesse ser amigável aos demais sentados naquela mesa.

Durante horas eles debateram, brigaram e ameaçaram. No fim uma série de leis foram criadas para transformar o mundo em um lugar onde todos pudessem viver.

Seriam criados redutos em Sautor para que os animagos pudessem viver, além de não nos revelarmos mais para os humanos comuns, com o tempo viraríamos lendas e lendas não poderiam intimidar e explorar os mais fracos.

No entanto a nova lei que mais agitou as entranhas de Cesan foi a de permitir o relacionamento de animagos de tribos diferentes.

- Sera que a Galvenais de Eckzahn teria tempo para tomar um chá comigo? – Cesan perguntou para Zorâ quando a alcançou na saída da sala.

- Ficaria feliz em aceitar! – respondeu ela corando um pouco.

Capitulo 1

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